"A água me contou muitos segredos
Guardou os meus segredos
Refez os meus desenhos
Trouxe e levou meus
medos"
Todos
os caminhos neste dia em Salvador-BA levam ao Bonfim. É hoje a famosa lavagem
do Bonfim com o cortejo que se segue pelas ruas da cidade baixa até a famosa
Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, padroeiro mor do estado junto com Nossa
Senhora da Conceição (da Praia).
A
festa surge num contexto histórico de segregação e opressão. Os negros não
podiam entrar na Igreja dos brancos (e ricos) senão para limpá-la e deixando-a
perfumada para seus senhores que rezarão na missa posteriormente. Segundo me
contaram aqui em Salvador, às vésperas da festa do padroeiro os negros se
reuniam à mando de seus senhores (não por vontade própria) para a limpeza da
Igreja. Por estarem longe dos olhos dos seus senhores, que achavam estar
acontecendo ali mera limpeza, os negros escravizados se alegravam cantando
canções em Iorubá.
Neste
ambiente o Sagrado se manifestava, dando alento ao seu povo por meio da
presença das divindades africanas conhecidas como orixás. Entre elas, uma era
considerada a mais suprema: Oxalá. O senhor que é todo misericordioso, amoroso
e que dá a paz.Que possui ainda uma paternidade envolta de compassividade e
sabedoria. Tal como era o homem divinizado exposto num madeiro adornado com
pedrarias e metais nobres no altar principal da Igreja: o Senhor do Bonfim. É
neste exato momento que Jesus e Oxalá dão as mãos e passam a ser uma única
coisa.
A
cor branca, liturgicamente usada nas festas do Senhor Jesus é a mesma das
tribos africanas que reverenciam os deuses funfun
(que usam pano branco) como Oxalá e Oxaguiã (Oxalá moço). Assim não há mal aos
olhos da igreja opressora os negros portarem vestes brancas. E o tempo
passou... e este costume de botar roupa branca para ir ao Bonfim está até hoje
entre adeptos do candomblé e cristãos devotos sendo difícil saber se é para
reverenciar um ou outro. Houve pois o momento de maior opressão que por um
tempo quis bloquear a entrada total dos negros na Igreja. A mesma que anteriormente
foi construída e lavada por eles para a festa dos brancos. Fizeram grades,
chamaram a policia, excomungaram...
Assim
restaram a escadarias como memória do costume antigo adquirido no contexto da
escravidão. Há quem pense que se trate de uma escadaria longa e exaustiva...
mas são apenas alguns degraus. O ato de lavar, hoje, transcendeu a limpeza do
espaço físico. Hoje "o lavar os degraus" diz de uma ação necessária à
alma. Diz de lavar as nossas "moradas interiores" afirmadas
existentes pela mística neoplatonica cristã. É se limpar de todo o egoísmo,
preconceito, intolerância, tristeza e toda sorte de más ações. É fazer alguma
ação que limpe verdadeiramente o coração deixando-o puro para acolher o Divino.
Isso independe da escolha de uma divindade "Jesus ou Oxalá". Ambas
testemunham o amor misericordioso do Ser Supremo que nos criou. É claro que
cada qual ao seu modo e à sua cultura conforme suas teologias.
Neste
dia da "lavagem do Bonfim" o Cristo e Oxalá dão as mãos e seguram
juntos o grande alá (pano branco) da
paz, que é, capaz de cobrir todos os seus filhos e filhas sem distinção de cor,
gênero, orientação sexual e crença.
Por
fim, lavar a alma e estar em paz é o compromisso de todos que hoje afirmam ter
fé para ir a pé à Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, coração religioso da Bahia.
Thiago Felipe