É
comum na Bahia considerar o dia de segunda-feira, dia santo para a honra dos santos
cristãos Lázaro e Roque e dos orixás africanos Omolu e Obaluayê. A Igreja de
São Lázaro, na Estrada Velha de São Lázaro, região entre os bairros de Ondina e
Federação, atrai centenas de devotos da Igreja Católica e dos Terreiros de
Candomblé da cidade do Salvador. Todos em geral vestidos de Branco, portando
contas, rosários, medalhas... objetos religiosos que expressam a fé nos santos
e nos orixás.
Lázaro,
irmão de Marta e Maria era grande amigo de Jesus. Segundo a Bíblia foi ressuscitado
por Jesus em Bethania. Atesta algumas tradições cristãs que o santo evangelizou
na Ilha de Chipre e lá provavelmente morreu. O texto bíblico mostra com profunda
sensibilidade parte de sua história e evidencia que Lázaro era muito querido
pelo Cristo, pois este chorara ao saber da noticia de sua morte. Suas irmãs,
Marta e Maria, mulheres simples também mui estimadas por Jesus já haviam
perdido as esperanças, pois Jesus chegara “tarde” demais. “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”,“ Senhor já
cheira mal, é o quarto dia” eram as vozes das irmãs Marta e Maria desoladas
pela falta do irmão já com o cadáver em decomposição a aguardar apenas o tempo
para cicatrizar a dor do irmão que partiu para o outro mundo. Porém o Cristo,
portador e arauto da vida em abundancia dá a ordem que re-estabelece as forças
vitais “Lázaro, vem para fora!”. E Lázaro voltou a viver! Lázaro não deixou
escrito como era o reino dos mortos e se de fato este plano espiritual existe,
mas, testemunhará a vida restituída por Jesus, seu amigo e mestre até que
experimente novamente a irmã morte.
Roque,
um francês, nascido em Montpellier, na idade média, com data imprecisa, era um
peregrino penitente, sua imagem atesta isto ao ser representado com as vestes
dos peregrinos que partem rumo a Compostela na Espanha em visita ao túmulo do
apostolo São Thiago Maior. Pouco se sabe de sua vida com exatidão. Para uns
teria sido um enfermeiro taumaturgo que curava as pessoas vitimadas pela peste
negra, para outros apenas um eremita que isolara na melancolia das florestas,
seguindo-se a partir destes fatos uma série de narrativas lendárias fortemente
manipuladas pelo imaginário popular da idade média. Conta ainda uma tradição
que alguns cachorros lhe curaram as feridas das pernas, apenas com as lambidas
e que estes cães lhe traziam o pão diário durante o isolamento da floresta.
Verdade ou não assim Roque é representado na iconografia cristã: um homem com
pernas feridas e cachorros ao redor. É invocado pela cristandade nas ocasiões
de epidemias e toda sorte de doenças. A ele foi erigida muitas igrejas pela
Europa a fora, especialmente nos períodos em que vigoravam as epidemias
dizimadoras de grande parte das populações.
Os
Santos Católicos Lázaro e Roque chegaram ao Brasil graças aos portugueses que
aqui se estabeleceram. Numa época em que epidemias eram alastradas pela cidade,
nada mais conveniente que rezar a estes santos e erigir igrejas a estes pedindo
proteção.
O
fenômeno do sincretismo religioso, objeto de estudo de antropólogos e
historiadores, fez com que estes dois santos fossem sincretizados com os orixás
africanos Omolu e Obaluayê. A palavra sincretismo possui em sua etimologia o
sufixo grego “syn” que diz da identificação ou união com algo, assim como é
expresso na palavra ‘Sim’bolo, sendo aquilo que une, contrapondo ao “dya” como
aquilo que aparta ou separa, daí os significados de diabo e diabólico como tudo
que é separado ou distante ou que cause divisão. O sincretismo possui então este sentido de
união de crenças e não de disfarce ou mistura como é freqüentemente comentado.
Na
época da escravidão, os negros, no desejo natural de todo ser humano de se
conectar com o Sagrado, privados, porém deste direito, conseguiram identificar
nos santos católicos as características de seus Orixás. Assim como os santos católicos
são chamados protetores e intercessores, os Orixás também o são, uma vez que a
palavra “ori” significa cabeça e “shá” pode significar guardião, entidade
ou espírito. Portanto temos um guardião da cabeça que podemos comparar por
analogia ao anjo de guarda dos cristãos.
Omolu
ou Obaluayê[1], segundo
algumas pessoas das religiões africanas é um orixá único diferenciado apenas
pelas etapas da vida: um é adulto e outro é idoso. É uma divindade misteriosa,
profundamente respeitada e temida. Seu culto é relacionado com a terra, às
doenças e com o reino dos mortos. Orixá também relacionado ao tempo que passa,
portanto à finitude que se instaura em um dado momento da existência de algo. Contam
as narrativas que Omolu, filho da Orixá ayabá[2]Nanã[3]
ao nascer fora rejeitado pela mãe por nascer com marcas pelo corpo todo. Omolu
foi abandonado por Nanã na praia ainda bebê quando alguns caranguejos morderam
suas feridas o deformando ainda mais. Este fato é sabido de todos os iniciados
da religião yorubá no Brasil atestado pelo costume dos filhos deste Orixá não
poderem comer caranguejos por lembrar a dor sentida pelo orixá. Na praia, Omolu
foi encontrado por Iemanjá, a deusa das águas salgadas, e, por ela foi adotado
e aliviado das feridas. As feridas cicatrizaram, mas as marcas não sumiram
fazendo com que as pessoas o repugnassem e se afastassem deste. Iemanjá em toda
a sua ternura de mãe lhe fez uma roupa com a palha - da -costa cobrindo-lhe
desde a cabeça até os pés. Quando ocorreu a divisão dos domínios da natureza
entre os orixás, Omolu ficou com a terra, elemento de onde emerge todo vegetal
necessário à sobrevivência dos animais, inclusive do homem. Ficou também com as
doenças em especial a lepra e a varíola.
A
terra, desde os tempos antigos, sempre esteve ligada ao culto da vida e da
morte. “Do pó viestes e ao pó retornarás”
(livro do Gênesis). É da terra que surge as hortaliças, legumes e frutas e na
terra a maioria das civilizações enterravam seus mortos. Podemos dizer que o
Omolu é o orixá da vida, da subsistência e da morte pois a semente precisa
morrer para brotar, se consome para gerar o broto que se transformará em
alimento. Conta uma lenda que certa vez na África houve uma grande seca e
escassez de alimento, quando em dado momento, este Orixá fez um grande banquete
dando comida a todos os orixás, provando ser ele o senhor da terra e digno de
respeito por todos os que outrora zombavam dele por sua aparência. Este
banquete, conhecido por “Olubajé”, é
celebrado ainda hoje, nas casas de candomblé, geralmente no mês de Agosto,
quando uma série de comidas, inclusive o “duburu”
(pipocas) que é a comida preferida de Omolu são distribuídas a todos os
presentes em cima de uma folha venenosa chamada mamona, trazendo assim o
belíssimo ensinamento de que sem o alimento morreríamos e também elucidando que
a vida pode ser mais saborosa que a morte.
E o que
tem a ver Omolu/Obaluayê com São Lázaro e São Roque?
São
Lazaro e São Roque é freqüentemente representado com muletas e feridas, dando a
entender uma situação de doença. Omolu como já foi dito possui em seu corpo
muitas marcas, e, no candomblé dança de forma mais encurvada, feito o andar de Lázaro
na velhice e também de forma mais lenta e introspectiva como os leprosos ou
quem porta muletas. Assim como São Roque, Omolu também é festejado no mês de
Agosto. É neste tempo que os terreiros saem às ruas com seus tabuleiros de
pipocas pedindo donativos, caminhando horas debaixo do sol, como São Roque, o peregrino
que caminhava penitentemente a Compostela.
À
pessoa do pobre e oprimido é associada a Omolu/ São Lázaro[4]
e em honra destes deve-se praticar a esmola como atitude de devoção e estima
aos santos. O fato de Omolu ser desprezado pela sua aparência “feia” [5]
e pela rejeição sofrida o une de maneira belíssima aos marginalizados da
sociedade. É justamente este “syn” que une as coisas e fatos, que nos revela a
proximidade do santo com os pobres e marginalizados da sociedade. Assim também
o é com os leprosos freqüentemente desprezados por classes mais afortunadas ainda
nos dias de hoje. Por meio desta espiritualidade e mística do sofrimento, o
próprio Omolu é que vem nos lembrar, que a peste, a doença e a morte são situações
que atingem a todos, pobres e ricos. Curiosamente, a Igreja de São Lázaro e São
Roque em Salvador, fica próxima a um extinto leprosário que funcionava no
passado, totalmente afastado do centro da cidade naquela época. Mais uma vez
vemos Omolu e Lázaro como uma das poucas entidades ao lado dos pobres e doentes
protegendo estes com sua presença parceira e amiga.
O
Velho, como docemente é chamado Omolu, nos revela (ou esconde) sua face sábia.
Os anos vividos por este, tudo o que este já passou, são capazes de gerar
ensinamentos de vida a todos nós, assim como o velho Lázaro, amigo de Jesus
Cristo que ensinou muita coisa aos seus vizinhos e até mesmo longe, na Ilha de
Chipre como atesta a lenda. Por ironia do destino, ou mesmo porque já fora predestinado
pelos deuses, bem próximo à igreja está instalada a Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBA[6],
centro acadêmico de dispersão do conhecimento por excelência que pretende
formar pessoas no campo do saber.
E
sua relação com a morte?
A
Igreja católica estabelece são Lazaro como protetor dos moribundos, dado ao
fato que este já passou por uma experiência de morte antes. Assim é para os
cristãos enfermos, um sinal de esperança da vida e saúde que pode ser
restituída. Omolu, senhor ou rei da terra como atesta o nome Obaluaiyê (Oba=
rei Aiyê= terra) recebe no seio da terra o corpo já sem vida das criaturas.
Assim como o Hades, na Grécia antiga, Omolu detém o domínio do reino dos mortos
exercendo influência sobre os espíritos (eguns). Há algumas oferendas e
trabalhos deste Orixá feitos somente nos cemitérios, considerados morada de
Omolu por excelência. Ao longo, da estrada que liga a Igreja de São Lazaro à Federação
são deixados “ébós” de limpeza para
se livrar dos eguns e das negatividades. Usa-se ainda, o contra-egun, cordão de
palha trançado (a palha é domínio de Omolu, pois é a folha morta que resiste)
para se proteger e se livrar dos eguns. A mesma palha que veste Omolu é usada
para espantar estes espíritos, que, por vezes atrapalham os seres humanos.
Talvez a palha lembre aos eguns toda autoridade que Omolu possui sobre eles e
por isso estes se mantêm longe de quem usa o cordão de palha atado ao corpo. De
forma curiosa, em Salvador, berço da religião yorubá no Brasil, o cemitério
mais antigo, chamado Campo Santo, fica nas imediações da Igreja de São Lazaro
que por sua vez se unia ao antigo leprosário. Outro cemitério mais recente, em
outra localidade é chamado não por caso de Quinta dos Lázaros.
Exercendo
influência sobre as pestes, podendo curar ou exterminar, o orixá também, parece
decidir que vai morrer ou não. Dado a estes aspectos, Omolu é profundamente
respeitado no Candomblé. Sua saudação “atotô!” significa “silêncio”, convidando
todos os adeptos à reverência, justamente por esta ali manifestado um orixá que
pode destituir a vida de alguém. A sua dança chamada “Opanijé” é misteriosa e alude
apenas a observação e veneração.
Graças
à sabedoria do povo negro, o culto a Omolu e Obaluaiyê, sobreviveu ao tempo.
Não foi uma incorporação de valores cristãos e europeus à crença africana, mas,
uma sabedoria capaz de unir (syn), ou melhor, “syncretizar” os elementos
característicos dos Orixás aos santos católicos. Nos dias de hoje, as pessoas
católicas ou candomblecistas, recorrem ao Santuário de São Lazaro clamando a
cura pelas doenças e pedindo condições dignas para sobreviver. Uma experiência
de fé incrível (na verdade, por demais crível) na cidade de Salvador: uma
devoção que atravessou séculos e ainda hoje continua sendo referencial das
religiões cristãs e africanas ao mesmo tempo. O que mais chama atenção é a
presença amistosa de pobres e ricos na comunidade eclesial local. O que mais
quer os ricos que possuem “tudo” junto daquele que é todo a favor dos pobres
que “nada” possuem? Certamente, aquilo que ser humano nenhum pode dar: a saúde,
a cura e a vida.
Thiago
Felipe Lima da Mata
Julho de 2013, segunda-feira,
dia dedicado a São Lazaro, São Roque,
Omolu e Obaluaiyê.
Referências:
VELLOSO,
Jorge. Candomblé de rua:o Bembé do Mercado. Salvador: Casa de
Palavras/FCJA,2001.
VERGER,Pierre
Fatumbi. Notas sobre o culto dos orixás e voduns na Bahia de todos os santos,
no Brasil, e na antiga costa dos escravos, na África. São Paulo: Edusp, 2000.
BIBLIA
DE JERUSALÉM. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
[1] A questão do nome do Orixá é por demais
complexa para se tratar aqui, pois, o povo de santo, estabelece qualidades e
nomes próprios que diferenciam o orixá sutilmente, porém existem qualidades
centrais como o uso da palha, o domínio dos mortos e doenças que parecem
agregar em algo uno. Algumas qualidades ou nomes dados a este orixá podem
variar de acordo com a origem deste na África. Verger apresenta nomes como
Azoany, Sapatá, Xapanã, Molu, Ajunsu, Jagun, Abaluayê ligados a diferentes
tribos e regiões africanas. Mais em Salvador, em geral se diz do Orixá como
Omolu ou Obaluayê.
[2]
“Ayabá” termo yorubá para nomear em geral as divindades femininas sendo
antônimo de “Oboró” destinado aos orixás do sexo masculino.
[3]
Orixá dos pântanos, manguezais e lamas ligada ao culto dos mortos e da velhice. Omolu é considerado pertencente a família
Jêje junto com seus irmãos Oxumaré, Ossanha, Ewá ,Iroko e sua mãe Nanã.
[4]
Pode-se estabelecer também uma relação com outro Lázaro descrito na Bíblia.
Contudo é bem improvável que este Lázaro tenha existido realmente e a história
contada por Jesus seja apenas mais uma parábola.
[5]
Existe uma lenda que Iansã, a deusa dos ventos, descobrira o rosto de Omolu
fazendo revelar um rosto muito lindo fazendo com que esta o seguisse pelo resto
da vida. Existe uma variedade de Iansã, chamada Iansã de Igbalé que vive junto
de Omolu no reino dos eguns (mortos).
[6] O
atual prédio da faculdade funcionava no passado como convento das freiras de
Santa Úrsula (Ursulinas) conforme atesta uma placa antiga fixada no casarão.