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Este Blog tem por finalidade estabelecer um contato com grandes amigos e pessoas importantes para mim. Nele Postarei um pouco de mim, do meu pensar, dos momentos que ficaram marcados em minha vida e também um pouco do que gosto,textos que acho interessante, paisagens! Encontrei aqui, neste espaço, uma maneira bem legal pra fazer isto e conto com ajuda de vocês para construí-lo. Um Grande Abraço a todos!

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Sincretismo na Bahia: São Lázaro e Omolu. Orixás e Santos Cristãos da cura, da morte e dos empobrecidos.


É comum na Bahia considerar o dia de segunda-feira, dia santo para a honra dos santos cristãos Lázaro e Roque e dos orixás africanos Omolu e Obaluayê. A Igreja de São Lázaro, na Estrada Velha de São Lázaro, região entre os bairros de Ondina e Federação, atrai centenas de devotos da Igreja Católica e dos Terreiros de Candomblé da cidade do Salvador. Todos em geral vestidos de Branco, portando contas, rosários, medalhas... objetos religiosos que expressam a fé nos santos e nos orixás.

Lázaro, irmão de Marta e Maria era grande amigo de Jesus. Segundo a Bíblia foi ressuscitado por Jesus em Bethania. Atesta algumas tradições cristãs que o santo evangelizou na Ilha de Chipre e lá provavelmente morreu. O texto bíblico mostra com profunda sensibilidade parte de sua história e evidencia que Lázaro era muito querido pelo Cristo, pois este chorara ao saber da noticia de sua morte. Suas irmãs, Marta e Maria, mulheres simples também mui estimadas por Jesus já haviam perdido as esperanças, pois Jesus chegara “tarde” demais. “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”,“ Senhor já cheira mal, é o quarto dia” eram as vozes das irmãs Marta e Maria desoladas pela falta do irmão já com o cadáver em decomposição a aguardar apenas o tempo para cicatrizar a dor do irmão que partiu para o outro mundo. Porém o Cristo, portador e arauto da vida em abundancia dá a ordem que re-estabelece as forças vitais “Lázaro, vem para fora!”.  E Lázaro voltou a viver! Lázaro não deixou escrito como era o reino dos mortos e se de fato este plano espiritual existe, mas, testemunhará a vida restituída por Jesus, seu amigo e mestre até que experimente novamente a irmã morte.

Roque, um francês, nascido em Montpellier, na idade média, com data imprecisa, era um peregrino penitente, sua imagem atesta isto ao ser representado com as vestes dos peregrinos que partem rumo a Compostela na Espanha em visita ao túmulo do apostolo São Thiago Maior. Pouco se sabe de sua vida com exatidão. Para uns teria sido um enfermeiro taumaturgo que curava as pessoas vitimadas pela peste negra, para outros apenas um eremita que isolara na melancolia das florestas, seguindo-se a partir destes fatos uma série de narrativas lendárias fortemente manipuladas pelo imaginário popular da idade média. Conta ainda uma tradição que alguns cachorros lhe curaram as feridas das pernas, apenas com as lambidas e que estes cães lhe traziam o pão diário durante o isolamento da floresta. Verdade ou não assim Roque é representado na iconografia cristã: um homem com pernas feridas e cachorros ao redor. É invocado pela cristandade nas ocasiões de epidemias e toda sorte de doenças. A ele foi erigida muitas igrejas pela Europa a fora, especialmente nos períodos em que vigoravam as epidemias dizimadoras de grande parte das populações.
Os Santos Católicos Lázaro e Roque chegaram ao Brasil graças aos portugueses que aqui se estabeleceram. Numa época em que epidemias eram alastradas pela cidade, nada mais conveniente que rezar a estes santos e erigir igrejas a estes pedindo proteção.
O fenômeno do sincretismo religioso, objeto de estudo de antropólogos e historiadores, fez com que estes dois santos fossem sincretizados com os orixás africanos Omolu e Obaluayê. A palavra sincretismo possui em sua etimologia o sufixo grego “syn” que diz da identificação ou união com algo, assim como é expresso na palavra ‘Sim’bolo, sendo aquilo que une, contrapondo ao “dya” como aquilo que aparta ou separa, daí os significados de diabo e diabólico como tudo que é separado ou distante ou que cause divisão.  O sincretismo possui então este sentido de união de crenças e não de disfarce ou mistura como é freqüentemente comentado.

Na época da escravidão, os negros, no desejo natural de todo ser humano de se conectar com o Sagrado, privados, porém deste direito, conseguiram identificar nos santos católicos as características de seus Orixás. Assim como os santos católicos são chamados protetores e intercessores, os Orixás também o são, uma vez que a palavra “ori” significa cabeça e “shá” pode significar guardião, entidade ou espírito. Portanto temos um guardião da cabeça que podemos comparar por analogia ao anjo de guarda dos cristãos.
Omolu ou Obaluayê[1], segundo algumas pessoas das religiões africanas é um orixá único diferenciado apenas pelas etapas da vida: um é adulto e outro é idoso. É uma divindade misteriosa, profundamente respeitada e temida. Seu culto é relacionado com a terra, às doenças e com o reino dos mortos. Orixá também relacionado ao tempo que passa, portanto à finitude que se instaura em um dado momento da existência de algo. Contam as narrativas que Omolu, filho da Orixá ayabá[2]Nanã[3] ao nascer fora rejeitado pela mãe por nascer com marcas pelo corpo todo. Omolu foi abandonado por Nanã na praia ainda bebê quando alguns caranguejos morderam suas feridas o deformando ainda mais. Este fato é sabido de todos os iniciados da religião yorubá no Brasil atestado pelo costume dos filhos deste Orixá não poderem comer caranguejos por lembrar a dor sentida pelo orixá. Na praia, Omolu foi encontrado por Iemanjá, a deusa das águas salgadas, e, por ela foi adotado e aliviado das feridas. As feridas cicatrizaram, mas as marcas não sumiram fazendo com que as pessoas o repugnassem e se afastassem deste. Iemanjá em toda a sua ternura de mãe lhe fez uma roupa com a palha - da -costa cobrindo-lhe desde a cabeça até os pés. Quando ocorreu a divisão dos domínios da natureza entre os orixás, Omolu ficou com a terra, elemento de onde emerge todo vegetal necessário à sobrevivência dos animais, inclusive do homem. Ficou também com as doenças em especial a lepra e a varíola.
A terra, desde os tempos antigos, sempre esteve ligada ao culto da vida e da morte. “Do pó viestes e ao pó retornarás” (livro do Gênesis). É da terra que surge as hortaliças, legumes e frutas e na terra a maioria das civilizações enterravam seus mortos. Podemos dizer que o Omolu é o orixá da vida, da subsistência e da morte pois a semente precisa morrer para brotar, se consome para gerar o broto que se transformará em alimento. Conta uma lenda que certa vez na África houve uma grande seca e escassez de alimento, quando em dado momento, este Orixá fez um grande banquete dando comida a todos os orixás, provando ser ele o senhor da terra e digno de respeito por todos os que outrora zombavam dele por sua aparência. Este banquete, conhecido por “Olubajé”, é celebrado ainda hoje, nas casas de candomblé, geralmente no mês de Agosto, quando uma série de comidas, inclusive o “duburu” (pipocas) que é a comida preferida de Omolu são distribuídas a todos os presentes em cima de uma folha venenosa chamada mamona, trazendo assim o belíssimo ensinamento de que sem o alimento morreríamos e também elucidando que a vida pode ser mais saborosa que a morte.
E o que tem a ver Omolu/Obaluayê com São Lázaro e São Roque?
São Lazaro e São Roque é freqüentemente representado com muletas e feridas, dando a entender uma situação de doença. Omolu como já foi dito possui em seu corpo muitas marcas, e, no candomblé dança de forma mais encurvada, feito o andar de Lázaro na velhice e também de forma mais lenta e introspectiva como os leprosos ou quem porta muletas. Assim como São Roque, Omolu também é festejado no mês de Agosto. É neste tempo que os terreiros saem às ruas com seus tabuleiros de pipocas pedindo donativos, caminhando horas debaixo do sol, como São Roque, o peregrino que caminhava penitentemente a Compostela. 

À pessoa do pobre e oprimido é associada a Omolu/ São Lázaro[4] e em honra destes deve-se praticar a esmola como atitude de devoção e estima aos santos. O fato de Omolu ser desprezado pela sua aparência “feia” [5] e pela rejeição sofrida o une de maneira belíssima aos marginalizados da sociedade. É justamente este “syn” que une as coisas e fatos, que nos revela a proximidade do santo com os pobres e marginalizados da sociedade. Assim também o é com os leprosos freqüentemente desprezados por classes mais afortunadas ainda nos dias de hoje. Por meio desta espiritualidade e mística do sofrimento, o próprio Omolu é que vem nos lembrar, que a peste, a doença e a morte são situações que atingem a todos, pobres e ricos. Curiosamente, a Igreja de São Lázaro e São Roque em Salvador, fica próxima a um extinto leprosário que funcionava no passado, totalmente afastado do centro da cidade naquela época. Mais uma vez vemos Omolu e Lázaro como uma das poucas entidades ao lado dos pobres e doentes protegendo estes com sua presença parceira e amiga.

O Velho, como docemente é chamado Omolu, nos revela (ou esconde) sua face sábia. Os anos vividos por este, tudo o que este já passou, são capazes de gerar ensinamentos de vida a todos nós, assim como o velho Lázaro, amigo de Jesus Cristo que ensinou muita coisa aos seus vizinhos e até mesmo longe, na Ilha de Chipre como atesta a lenda. Por ironia do destino, ou mesmo porque já fora predestinado pelos deuses, bem próximo à igreja está instalada a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA[6], centro acadêmico de dispersão do conhecimento por excelência que pretende formar pessoas no campo do saber.
E sua relação com a morte?
A Igreja católica estabelece são Lazaro como protetor dos moribundos, dado ao fato que este já passou por uma experiência de morte antes. Assim é para os cristãos enfermos, um sinal de esperança da vida e saúde que pode ser restituída. Omolu, senhor ou rei da terra como atesta o nome Obaluaiyê (Oba= rei Aiyê= terra) recebe no seio da terra o corpo já sem vida das criaturas. Assim como o Hades, na Grécia antiga, Omolu detém o domínio do reino dos mortos exercendo influência sobre os espíritos (eguns). Há algumas oferendas e trabalhos deste Orixá feitos somente nos cemitérios, considerados morada de Omolu por excelência. Ao longo, da estrada que liga a Igreja de São Lazaro à Federação são deixados “ébós” de limpeza para se livrar dos eguns e das negatividades. Usa-se ainda, o contra-egun, cordão de palha trançado (a palha é domínio de Omolu, pois é a folha morta que resiste) para se proteger e se livrar dos eguns. A mesma palha que veste Omolu é usada para espantar estes espíritos, que, por vezes atrapalham os seres humanos. Talvez a palha lembre aos eguns toda autoridade que Omolu possui sobre eles e por isso estes se mantêm longe de quem usa o cordão de palha atado ao corpo. De forma curiosa, em Salvador, berço da religião yorubá no Brasil, o cemitério mais antigo, chamado Campo Santo, fica nas imediações da Igreja de São Lazaro que por sua vez se unia ao antigo leprosário. Outro cemitério mais recente, em outra localidade é chamado não por caso de Quinta dos Lázaros.


Exercendo influência sobre as pestes, podendo curar ou exterminar, o orixá também, parece decidir que vai morrer ou não. Dado a estes aspectos, Omolu é profundamente respeitado no Candomblé. Sua saudação “atotô!” significa “silêncio”, convidando todos os adeptos à reverência, justamente por esta ali manifestado um orixá que pode destituir a vida de alguém. A sua dança chamada “Opanijé” é misteriosa e alude apenas a observação e veneração.
            Graças à sabedoria do povo negro, o culto a Omolu e Obaluaiyê, sobreviveu ao tempo. Não foi uma incorporação de valores cristãos e europeus à crença africana, mas, uma sabedoria capaz de unir (syn), ou melhor, “syncretizar” os elementos característicos dos Orixás aos santos católicos. Nos dias de hoje, as pessoas católicas ou candomblecistas, recorrem ao Santuário de São Lazaro clamando a cura pelas doenças e pedindo condições dignas para sobreviver. Uma experiência de fé incrível (na verdade, por demais crível) na cidade de Salvador: uma devoção que atravessou séculos e ainda hoje continua sendo referencial das religiões cristãs e africanas ao mesmo tempo. O que mais chama atenção é a presença amistosa de pobres e ricos na comunidade eclesial local. O que mais quer os ricos que possuem “tudo” junto daquele que é todo a favor dos pobres que “nada” possuem? Certamente, aquilo que ser humano nenhum pode dar: a saúde, a cura e a vida.


 Thiago Felipe Lima da Mata
Julho de 2013, segunda-feira,
dia dedicado a São Lazaro, São Roque, Omolu e Obaluaiyê.

Referências:
VELLOSO, Jorge. Candomblé de rua:o Bembé do Mercado. Salvador: Casa de Palavras/FCJA,2001.
VERGER,Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto dos orixás e voduns na Bahia de todos os santos, no Brasil, e na antiga costa dos escravos, na África. São Paulo: Edusp, 2000.
BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.



[1]  A questão do nome do Orixá é por demais complexa para se tratar aqui, pois, o povo de santo, estabelece qualidades e nomes próprios que diferenciam o orixá sutilmente, porém existem qualidades centrais como o uso da palha, o domínio dos mortos e doenças que parecem agregar em algo uno. Algumas qualidades ou nomes dados a este orixá podem variar de acordo com a origem deste na África. Verger apresenta nomes como Azoany, Sapatá, Xapanã, Molu, Ajunsu, Jagun, Abaluayê ligados a diferentes tribos e regiões africanas. Mais em Salvador, em geral se diz do Orixá como Omolu ou Obaluayê.
[2] “Ayabá” termo yorubá para nomear em geral as divindades femininas sendo antônimo de “Oboró” destinado aos orixás do sexo masculino.
[3] Orixá dos pântanos, manguezais e lamas ligada ao culto dos mortos e da velhice.  Omolu é considerado pertencente a família Jêje junto com seus irmãos Oxumaré, Ossanha, Ewá ,Iroko e sua mãe Nanã.
[4] Pode-se estabelecer também uma relação com outro Lázaro descrito na Bíblia. Contudo é bem improvável que este Lázaro tenha existido realmente e a história contada por Jesus seja apenas mais uma parábola.
[5] Existe uma lenda que Iansã, a deusa dos ventos, descobrira o rosto de Omolu fazendo revelar um rosto muito lindo fazendo com que esta o seguisse pelo resto da vida. Existe uma variedade de Iansã, chamada Iansã de Igbalé que vive junto de Omolu no reino dos eguns (mortos).
[6] O atual prédio da faculdade funcionava no passado como convento das freiras de Santa Úrsula (Ursulinas) conforme atesta uma placa antiga fixada no casarão.

terça-feira, 18 de março de 2014

Do Calvário da Judéia às Montanhas de Minas Gerais: A via-sacra do povo sofrido sob a luz da religiosidade e da fé.

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos.”.

Acredito que muita gente nem sempre se interessa em ler as minhas notas de face book. E não me chateio nem um pouco com isso. Pois todo mundo tem o direito de achar besteira, assim como eu acho em muita coisa que leio nas redes sociais. Mas ninguém poderá tolir a minha liberdade de expressão já que como diz o poeta Fernando Anitelli “o post é voz que nos libertará!”.
 É comum eu sempre escrever sobre algum evento fazendo relação com a religião, folclore, tradição e simbologia do nosso povo ainda que não me sinta preparado para fazê-lo em nível acadêmico ou em outro que seja em vias formais. Quase sempre fiz alusão aos orixás e às coisas daqui da Bahia onde resido hodiernamente. Não me recordo de ter  escrito algo sobre meu estado que amo tanto “Minas Gerais”. Minas assim como Bahia tem um vasto universo cultural multidifuso em todo seu imenso território. Muito me é prazeroso falar do meu povo. De sua cultura que só quem conhece bem saberia o quanto é esplêndido este “trem”. Mais do que o pão de queijo, a cachaça e doce de leite, Minas trás outros deleites como as tradições religiosas. Nestas tradições vemos a mais sublime expressão do barroco imortalizada nas Igrejas Antigas como as de Ouro Preto, Congonhas, Sabará e Mariana com obras de Athayde e Aleijadinho.
Nós herdamos a fé cristã dos povos europeus que vieram aqui para tirar nosso ouro e nos “ensinar a rezar”. Em geral fomos batizados e fizemos nossa primeira comunhão, crisma... conforme a religião já que éramos obrigados pelos nossos pais. Não comemos carne na Sexta-feira da Paixão até mesmo sem questionar, mais por hábito do que pelo sentido implícito no ato devocional obrigatório segundo a Igreja. Neste imenso clarão que é a mística do povo mineiro é incontestável a riqueza simbólica e religiosa da Semana santa. Tradições antiguíssimas que ainda hoje atraem curiosos, pesquisadores, turistas, cristãos ou não. Nesta semana tão importante para o povo católico a cristandade revive os momentos “finais” da vida de Cristo sob a égide do Mistério e dos dogmas da salvação.
Em uma cidade do interior de Minas Gerais, cercada pelas montanhas do Espinhaço donde desce cachoeiras belíssimas... Onde uma neblina matinal é extinta aos poucos pelos raios do sol nascente... Onde existe gado e belos pomares... onde não tem asfalto e nem água encanada... onde a vida é simples, a gente é pouca e a fé é tamanha... acontece a semana santa antecipada pela quaresma que é reconhecida pelos panos roxos que tampam os santos na Igreja.
Na sexta -feira santa, Dona Maria acorda cedinho. Nem pensa em pegar hoje na enxada da horta nem em seus baldes usados para transportar a água que sempre busca na nascente distante de sua casa. Troca tudo isso pelo seu rosário já faltando algumas contas. Dona Maria, assim como seu marido José, preza muito um cafezinho adoçado com rapadura tirada das canas que têm que cultivar no quintal. Mas nesta sexta -feira bendita despreza tão deleitosa bebida, assim como o cigarro de palha. Fazem isso de coração em reverência e penitência pela paixão de Jesus Cristo. Todos os seus sofrimentos, vividos na labuta diária parecem ser hoje insignificante perto da paixão daquele que sofreu a dois mil anos atrás a milhares de quilômetros do seu pomar já sem frutos prenunciando o inverno.  Depois de rezar, acorda seus filhos, tomam banho rápido com a água aquecida pela serpentina do fogão á lenha.  Arrumam-se com toda simplicidade e modéstia, pois o dinheiro da família mal compra os alimentos quem dirá roupas caras. Mas quanto zelo eles tem! Os cabelos de Mariazinha, a menor, estão cheirosos como a orquídea perfumada que se enraíza no pé de manga-ubá do quintal. Correm para a cidade. A “missa” é as três...logo em seguida é a procissão do Senhor morto. Este ano terá teatro contando os últimos passos de Jesus. Todos estão ansiosos para ver. Luiz o mais velho será discípulo figurante na peça. Está muito feliz por isso. Um padre velho celebra o ato da adoração da Cruz, pois neste dia, embora seja desconhecido para muita gente, não se celebra missa alguma.
A melancolia e nostalgia parecem invadir a Igreja. O sol parece nem querer brilhar. Uma tristeza estranha paira sobre o lugar. Se fecho os olhos tenho vontade de chorar. Termina a celebração e é possível fazer um lanchinho com os saborosos biscoitos de polvilho da mamãe feitos na quinta-feira. Luiz dá um show de interpretação na hora da via-sacra ao vivo. Será chamado para o ano que vem com papel mais notável. A mãe se emociona com o filho ator que sonha em ser doutor.
Começa a procissão. José, pai de Luiz e Mariazinha é chamado para segurar o pesado andor da imagem do Senhor dos Passos. Que imagem belíssima! Parece ser real. Até cabelo e olho brilhante possui. É do século XVII, barroco da mais bela expressividade!  Na hora em que o andor segue a rua abaixo, José pensa que assim como o Senhor da Cruz, ele também carrega o seu fardo tendo que dá duro na lavoura para poder sustentar a família. Mais é com a fé no Senhor dos Passos, como é chamada a imagem, que ele caminha com saúde e ânimo nas outras semanas do ano que nem sempre são santas. Logo atrás do andor de Jesus segue-se outro cheio de flores brancas e azuis com uma imagem tristonha da Virgem Maria. É a Nossa Senhora das Dores toda lacrimosa com seu coração transpassado por uma espada prateada. Dá dó ver ela assim. Que lindos olhos ela possui. Dona Maria assim como a Maria do andor também se reconhece no pranto explicito na estátua. Ela chora sempre no quarto à noite, escondida de seus filhos e do marido por achar difícil a vida. Mais em questão de minutos louva ao Deus bondoso por manter sua família com saúde e longe da violência. Ela pede a Mãe de Deus que chora para que seus filhos tenham muitas alegrias na vida. Que lhes afaste o mau pranto.
As luzes de vela e um cheiro de manjericão parecem provocar um estado hipnótico na multidão...mas bem longe de sugerir algum ópio para o povo. As mesmas ervas usadas nos chás e temperos, estão ali agora cobrindo a imagem do Senhor Morto, descida da Cruz á poucos minutos. O padre fala bravamente: “Jesus morreu por todos nós! Morreu para dar Vida a todos!” Estas palavras entram no coração e incomodam. Quer dizer que tudo isso não termina com a morte?
Encerrado o ato litúrgico. Já são quase 21 horas. A família volta para seu lugar na roça. Feliz por mais um ano de semana santa. Comentam da peça, das imagens, das beatas, da força de Seu José ao carregar o andor...
 A tristeza foi-se. Agora só se pensa na missa do Sábado de Aleluia. As crianças acordarão cedinho para tacar pedras e fogo no boneco que representa o Judas que traiu Jesus. De noite haverá uma imensa fogueira na porta da Igreja que nem aquelas de São João. O Padre muito bem vestido irá proclamar para todos que Jesus voltou a viver. As crianças não entendem muito isso e pra ser sincero nem os adultos. E entre as montanhas de Minas... é rememorado mais uma vez tudo que aconteceu numa outra montanha chamada Golgóta no país da Judéia. E ao pé da serra, na luta da vida, na melancolia e em família, a tradição da semana santa persiste.

Ah!!! Jose trabalhou um pouco mais e Maria lavou roupa para uma dona rica da cidade na segunda-feira. Sobraram uns trocados para garantir ovos de páscoa para as crianças. No domingo terá a galinhada. Desta vez quem irá morrer será a galinha mais gorda do quintal que será servida com um delicioso quiabo ensopado e um angu de fubá do moinho d’água. José poderá tomar sua cachaça antes da ceia pascal e fumar seu cigarro de palha. Não faz mal ao espírito é para celebrar.

Thiago Felipe Lima da Mata/Março de 2014


*Fotografias retiradas da Internet

sábado, 8 de março de 2014

A LAMA DE NANÃ E O UNIVERSO DAS MULHERES: Berçário de Toda Vida.



Há algum tempo convidado pela Professora Uilma participei de um projeto da Faculdade de Educação da UFBA chamado “Maré de Saberes”. O Projeto era focado no convívio com as marisqueiras que são trabalhadoras  nos manguezais de algumas cidades do Recôncavo baiano  como Salinas da Margarida, São Sebastião do Passé, Acupe e Bom Jesus dos Passos. O Professor Lourenço, Doutor em Filosofia sempre me dizia que, eu, sendo mineiro teria que ser muito grato a todo conhecimento do simbólico e da cultura local que me eram repassados por aqui na Bahia. Sendo assim quero render uma singela homenagem às mulheres desta terra e à Mãe Terra que aqui se faz presente.
Com enorme faixa litorânea, o estado da Bahia possui também uma considerável faixa de manguezais. Enquanto os homens trabalham em outros ofícios como a pesca em alto mar, as mulheres se dedicam às tarefas do mangue fazendo do siri, caranguejo e mariscos fontes de seu sustento. Na maré baixa elas saem à procura de mariscos como o mapé, sururu, chumbinho e sarnambi. Ficam horas reclinadas sob o calor do sol cavando na areia até encherem a cesta ou o balde. Depois, em suas casas, vão para um fogão improvisado de blocos ou tijolos, que alimentados com a lenha nativa ou de caixotes de feira sustentam a lata com água à ser fervida com os mariscos até abrirem as cascas. O marisco é retirado de dentro das conchas e armazenado em geral em embalagens contendo 1kg  que são vendidos a um preço nem sempre justo a todo trabalho tido pelas mulheres nas feiras da grande cidade.
Na Bahia de Todos os Santos e Orixás a senhora Nanã, sincretizada como Santa Ana é a divindade dos manguezais e das águas lamacentas. É a orixá Ayabá mais velha. Ela conhece, portanto, os segredos da formação do homem, pois dos domínios dela (terra) ele lhe fora plasmado. Nanã é a representação africana-brasileira de Géia ou Gaia, a Mãe Terra. Ela conhece os segredos da existência e somente ela detém os mistérios de sua gênese e do seu regresso ao seu seio. Nanã-Terra é capaz de fornecer a energia que desperta a vida na semente garantindo assim a manutenção da vida dos animais por meio do brotar dos vegetais. Curiosamente, em outras culturas, como a hebraica, a terra é participante ativa na criação do homem. O livro do Gênesis conta que Yahweh formou o homem e a mulher da terra. Da terra foram criados e à terra retornariam. O elemento Terra traz consigo a essência da vida e da morte. É o leito que desperta o homem, pois o homem cresce e sobrevive graças ao sustento dos alimentos brotados dela. Mas, é o leito onde retornará sob alguns palmos de terra como se vê na cultura funerária ocidental cristã. Geia a grande titã grega dá origem sozinha à vários elementos e deuses, pois ela é por excelência fecundidade, não necessitando em primeiro instante da essência masculina para procriar. Assim também a velha Nanã, recusa a participação masculina nos seus axés declarando-se independente de Ogum (representação masculina) para se alimentar e sobreviver.  Por isso, nos cultos à Nanã não se usa ferro ( elemento de Ogum) fazendo-se segredo de como o animal a ser sacrificado é morto. Não se usa facas, nem qualquer metal para vitimá-lo. Os homens não são escolhidos por Nana para sua manifestação. E todos, homens e mulheres, a temem e lhe respeitam profundamente, por causa de sua força e dos segredos da vida e da morte que guarda consigo.



É da lama de Nanã que as marisqueiras tiram a vida. Na lama de Nanã, isto é, no mangue, homem não entra. Os manguezais são domínios das mulheres. Na dança ritualística, Nanã se mantém encurvada, posição que diz da sua muita idade. Encurvadas também estão as marisqueiras, na lama ou na praia, à procura dos mariscos que lhes trarão o sustento de casa.
Embora, o mangue, se torne às vezes um lugar triste e sombrio sem ele certamente não existiria a vida marinha. Os manguezais são responsáveis por grande parte da manutenção das espécies do mar e sem eles muitos peixes e micro-organismos não existiriam. O mangue é a fonte de vida do mar.
A vida só existe graças a toda esta essência de feminilidade presente na natureza. Não existe vida sem a mulher. Só a mulher contém o segredo capaz de gerar a vida. Sendo rejeitada por Oxalá (essência criadora masculina) e por Ogum (tékné) Nanã consegue se afirmar o tempo inteiro sob o Orun (céu)e o Aiyê ( terra) pois ela possui algo que os demais não possui: a fecundidade. Vitimada por preconceitos sociais, privada de direitos como educação e saúde, a mulher marisqueira consegue extrair da natureza os mariscos com uma delicadeza e habilidade que muitos homens não saberiam usar... e garantem a sobrevivência de suas famílias.
A mulher e mãe terra são detentoras da vida. Conhecem e detém os segredos da geração. Sem a terra/mulher não existiriam homens. Sem as marisqueiras não existiriam os saborosos pratos da nossa culinária baiana tão querida à nossa gente.
Bendita seja a mulher! Detentora da vida! Lhe é inegável a sua garra, o seu trabalho, a sua ternura, afeto, amor e maternidade. Bendita seja a mulher marisqueira com sua coragem, sabedoria e habilidade que, como Maria Felipe, heroína de nossa independência trazem consigo o sonho da liberdade.
Feliz dia das mulheres a todas as mulheres que carregam o dom da vida e que completam as nossas vidas!

8 de Março, dia das mulheres, sábado, dia dedicado a Nanã.  
Thiago Felipe